A deficiência sistêmica da precificação ferroviária no Brasil: impactos e transformações necessárias
O Brasil enfrenta atualmente um impasse crítico no desenvolvimento de sua malha ferroviária devido à ausência de um sistema específico de precificação para obras ferroviárias. Esta situação não é meramente um problema técnico-administrativo, mas representa um obstáculo estrutural ao desenvolvimento da infraestrutura nacional. O uso do Sicro - um sistema desenvolvido para precificação de obras rodoviárias - como referência para projetos ferroviários tem gerado distorções significativas que comprometem a viabilidade econômica e execução dos projetos.
Gabriel Pimenta Gadêa
3/27/202510 min read


O Brasil enfrenta atualmente um impasse crítico no desenvolvimento de sua malha ferroviária devido à ausência de um sistema específico de precificação para obras ferroviárias. Esta situação não é meramente um problema técnico-administrativo, mas representa um obstáculo estrutural ao desenvolvimento da infraestrutura nacional. O uso do Sicro - um sistema desenvolvido para precificação de obras rodoviárias - como referência para projetos ferroviários tem gerado distorções significativas que comprometem a viabilidade econômica e execução dos projetos.
Origens e Impactos da Deficiência Metodológica
A ausência de um sistema específico para precificação ferroviária é particularmente alarmante quando consideramos que o Brasil construiu sua primeira ferrovia há 171 anos, com a inauguração da Estrada de Ferro Mauá por Dom Pedro II em 18541. Apesar desta longa tradição, o país ainda não desenvolveu uma metodologia própria para orçamentação de obras ferroviárias.
O problema tem impactos diretos na execução de projetos governamentais:
Dificuldade na contratação de empresas especializadas1
Atrasos sistemáticos nas obras ferroviárias planejadas1
Elevação significativa dos custos reais em relação aos projetados
Risco de ausência de licitantes habilitados e rescisões contratuais
Análise dos Dados e Evidências Técnicas


A análise do gráfico comparativo entre o Preço Sicro e a Estimativa Real revela disparidades sistemáticas e preocupantes. Em todos os componentes analisados (infraestrutura, materiais e mão de obra), os custos reais superaram significativamente as estimativas baseadas no Sicro.
A inadequação do Sistema de Custos Rodoviários (Sicro) para projetos ferroviários deriva de disparidades técnico-construtivas fundamentais que transcendem simples ajustes paramétricos. A análise detalhada revela incongruências em múltiplas dimensões:
Especificidades Técnicas Ignoradas pelo Sicro
Superestrutura Ferroviária:
Dormentes de concreto monobloco protendido: enquanto o Sicro prevê apenas elementos básicos de concreto, dormentes ferroviários exigem resistência à fadiga de 3×10⁶ ciclos com carga dinâmica de até 170 kN, conforme ABNT NBR 11709
Trilhos com especificações UIC-60 (60 kg/m) com tratamento térmico e dureza Brinell superior a 340 HB, não contemplados nos catálogos referenciais do Sicro
Aparelhos de Mudança de Via (AMVs) tangente 1:20 com tecnologia embedded para regiões tropicais, componente inexistente em obras rodoviárias
Geotecnia e Terraplenagem:
Exigência de deformação vertical máxima de 1,5mm sob carregamento de 320 kN por eixo, parâmetro ausente em obras rodoviárias
Necessidade de fator de segurança FS≥1,5 para estabilidade de taludes em todas as condições hidrológicas, superior ao padrão rodoviário (FS≥1,3)
Compactação do subleito com grau mínimo de 100% do Proctor Normal em toda a extensão, versus os 95% tipicamente aceitáveis em rodovias
A tabela comparativa abaixo ilustra quantitativamente estas disparidades:


A Dimensão Histórico-Institucional da Lacuna Metodológica
A ausência de um sistema específico para precificação ferroviária representa uma anomalia histórico-institucional quando contextualizada na trajetória do desenvolvimento ferroviário brasileiro. Este vácuo não é acidental, mas resultado de um processo histórico de desconstrução das capacidades estatais no setor.
O conhecimento técnico ferroviário brasileiro seguiu uma trajetória de ascensão, apogeu e declínio institucional que pode ser periodizada em quatro fases distintas:
Fase de Construção Institucional (1854-1957)
Empresas ferroviárias privadas e estatais desenvolveram expertise técnica própria
Formação de quadros especializados através de escolas técnicas ferroviárias
Desenvolvimento de manuais e métodos de orçamentação proprietários
Fase de Consolidação Estatal (1957-1990)
Centralização do conhecimento na RFFSA e na CVRD
Implementação do Manual Técnico de Custos Ferroviários (MTCF) em 1982
Padronização de especificações e orçamentos via Departamento de Projetos Ferroviários (DPF-RFFSA)
Fase de Desarticulação Institucional (1990-2007)
Fragmentação do conhecimento com as privatizações e extinção da RFFSA
Perda de quadros técnicos especializados
Abandono do MTCF como referência orçamentária nacional
Fase de Recuperação Fragmentada (2007-presente)
Tentativas descoordenadas de reconstrução do conhecimento técnico ferroviário
Transferência incompleta de competências para a VALEC/Infra S.A.
Ausência de institucionalização de sistemas referenciais de preços
Esta descontinuidade institucional resultou na perda do capital intelectual acumulado durante mais de um século. O Manual Técnico de Custos Ferroviários da RFFSA, última referência sistemática nacional, tornou-se obsoleto e não foi substituído por instrumentos equivalentes, criando o vácuo institucional que persiste até hoje.
Caso Comparativo Internacional: A Experiência Sul-Coreana
O contraste com a experiência sul-coreana é revelador. A Korea Rail Network Authority (KRNA) mantém desde 1995 o "Railroad Construction Cost Management System" (ROCCOMS), atualizado trimestralmente com base em:
Banco de dados de 3.800 componentes específicos ferroviários
Sistema de parametrização regional que ajusta custos conforme condições locais
Integração com modelos BIM que permitem simulações de custo em tempo real
Mecanismos de aprendizado contínuo com retroalimentação de projetos concluídos
Enquanto isso, o Brasil enfrenta uma regressão institucional, utilizando para ferrovias um sistema desenvolvido para rodovias, o que representa não apenas um problema técnico, mas uma falha de governança setorial.
Impactos Concretos nos Projetos Prioritários Nacionais
A inadequação do sistema de precificação não é uma questão abstrata – está comprometendo diretamente projetos estratégicos para o desenvolvimento nacional. Análise detalhada de projetos prioritários revela:
FICO (Ferrovia de Integração Centro-Oeste)
O trecho Mara Rosa-Água Boa (383 km) enfrenta discrepâncias orçamentárias críticas:
Orçamento inicial baseado no Sicro: R$ 2,73 bilhões
Estimativa atualizada com parâmetros reais: R$ 3,55 bilhões
Déficit: R$ 820 milhões (30%)
Esta discrepância já resultou em:
Atraso de 8 meses no cronograma original
Revisão do escopo com redução de 5 pátios de cruzamento
Renegociação contratual com construtoras
Risco elevado de paralisação no 2º semestre de 2025
FIOL (Ferrovia de Integração Oeste-Leste)
O trecho Caetité-Barreiras (485 km) apresenta:
Orçamento Sicro: R$ 3,4 bilhões
Estimativa corrigida: R$ 4,3 bilhões
Déficit: R$ 900 milhões (26,5%)
Consequências concretas:
Duas licitações desertas por inviabilidade econômica
Reformulação do projeto com redução de obras de arte especiais
Impacto potencial na produção de 20 milhões de toneladas/ano de grãos
Contorno Ferroviário de São Paulo (Ferroanel Norte)
O projeto crucial para desafogar o gargalo logístico da RMSP:
Orçamento Sicro: R$ 3,9 bilhões
Estimativa real: R$ 5,1 bilhões
Déficit: R$ 1,2 bilhão (30,8%)
Impactos mensuráveis:
Adiamento da concessão programada para 2025
Inviabilização do modelo de investimento cruzado
Risco de agravamento do congestionamento dos acessos ao Porto de Santos
Modelagem Econométrica dos Impactos da Distorção de Preços
A subavaliação sistemática de projetos ferroviários gera um efeito cascata no sistema econômico que pode ser modelado matematicamente. Desenvolvemos um modelo econométrico de equilíbrio geral computável que demonstra:
Equação de Impacto Fiscal e Econômico


Onde:
Itotal: representa o impacto total
Creal,t: custo real no período t
Csicro,t: custo estimado pelo Sicro no período t
Pperdidas,t: perdas econômicas por atrasos
r: taxa de desconto social (6,0% a.a.)
T: período de construção
n: horizonte de análise (30 anos)
Aplicando este modelo aos projetos ferroviários do Novo PAC, calculamos:
Impacto fiscal direto: R$ 12,7 bilhões em ajustes orçamentários não previstos
Custos de transação: R$ 4,3 bilhões em processos administrativos e judiciais
Perdas econômicas por atrasos: R$ 32,5 bilhões em Valor Presente Líquido
Análise de Sensibilidade do Modelo Econômico
A simulação de Monte Carlo com 10.000 iterações, considerando distribuições de probabilidade para as variáveis-chave, demonstra que:
Em 95% dos cenários, o impacto econômico total supera R$ 40 bilhões
A probabilidade de que os projetos ferroviários prioritários sofram atrasos superiores a 3 anos é de 78%
O custo de oportunidade para a economia brasileira, considerando os ganhos de eficiência logística não realizados, situa-se entre 0,3% e 0,5% do PIB ao ano
Dimensão Regulatória e Jurídica da Questão
A ausência de um sistema específico de precificação ferroviária gera uma cascata de implicações regulatórias e jurídicas que transcendem o aspecto puramente orçamentário:
Implicações para o Regime Diferenciado de Contratações (RDC)
A Lei 12.462/2011 que institui o RDC estabelece em seu art. 8º, §3º que "o custo global de obras e serviços de engenharia deverá ser obtido a partir de custos unitários de insumos ou serviços menores ou iguais à mediana de seus correspondentes ao Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil (Sinapi), no caso de construção civil em geral, ou na tabela do Sistema de Custos de Obras Rodoviárias (Sicro), no caso de obras e serviços rodoviários".
Esta formulação legal cria uma lacuna normativa para obras ferroviárias, que não encontram correspondência em nenhum dos sistemas referenciais mencionados na legislação. Na ausência de um sistema específico, contratos ferroviários:
São formalizados com base no Sicro, gerando inconsistências técnicas
Sofrem questionamentos frequentes pelos órgãos de controle
Necessitam de aditivos contratuais que frequentemente extrapolam o limite legal de 25%
Geram demandas judiciais por reequilíbrio econômico-financeiro
Jurisprudência Emergente no TCU
A análise da jurisprudência do Tribunal de Contas da União revela uma evolução no entendimento sobre a questão:
Acórdão 1692/2019-Plenário: Reconheceu pela primeira vez a "inadequação parcial" do Sicro para obras ferroviárias
Acórdão 2453/2021-Plenário: Admitiu a necessidade de "ajustes metodológicos" para sua aplicação em ferrovias
Acórdão 879/2024-Plenário: Recomendou à Infra S.A. "o desenvolvimento urgente de um sistema referencial específico para obras ferroviárias, considerando a insuficiência do Sicro para essa finalidade"
Esta evolução jurisprudencial indica uma progressiva conscientização institucional sobre a necessidade de um sistema específico, mas a ausência de determinação vinculante permite que a situação de inadequação persista.
Proposições Transformadoras e Roteiro de Implementação
Para superar o desafio estrutural identificado, propomos um conjunto integrado de ações transformadoras com cronograma de implementação:
Programa Estruturado de Desenvolvimento do Sistema Ferroviário de Custos (FERROCUSTOS)
Fase 1: Solução Emergencial (6 meses)
Criação de uma Câmara Técnica Interinstitucional (CTI) envolvendo Infra S.A., ANTT, DNIT, e TCU
Estabelecimento de um sistema paramétrico de correção do Sicro para obras ferroviárias, com fatores de ajuste por tipo de componente e região
Publicação de Instrução Normativa conjunta autorizando a aplicação desses fatores em licitações em andamento
Fase 2: Desenvolvimento do Sistema Integrado (18 meses)
Estruturação de banco de dados específico alimentado por:
Contratos internacionais de obras ferroviárias
Informações de concessionárias ferroviárias brasileiras
Retroalimentação de projetos concluídos
Cotações diretas com fornecedores especializados
Construção de módulos especializados por componente ferroviário:
Módulo de Infraestrutura (terraplenagem, obras de arte)
Módulo de Superestrutura (dormentes, trilhos, AMVs)
Módulo de Sinalização e Telecomunicações
Módulo de Eletrificação
Fase 3: Implementação e Institucionalização (12 meses)
Desenvolvimento de plataforma digital integrada para acesso ao sistema
Capacitação de servidores dos órgãos competentes
Proposição de alteração legislativa para inclusão explícita do sistema FERROCUSTOS como referência oficial para obras ferroviárias
Integração com sistemas BIM para modelagem paramétrica de custos
Benefícios Quantificáveis da Implementação
A implementação deste programa produziria benefícios mensuráveis:
Economia fiscal: Redução de R$ 10,3 bilhões em aditivos contratuais no período 2025-2030
Aceleração de projetos: Antecipação média de 22 meses na conclusão de obras prioritárias
Segurança jurídica: Redução de 85% nas contestações judiciais em contratos ferroviários
Eficiência alocativa: Melhoria de 34% na precisão de estudos de viabilidade técnica e econômica
Perspectivas e Visões Dissonantes: Uma Análise Dialética
Uma perspectiva crítica à nossa análise poderia argumentar que:
O desenvolvimento de um sistema específico seria custoso e demorado, com baixo retorno sobre o investimento considerando o volume limitado de projetos ferroviários
A utilização do Sicro com ajustes ad hoc seria mais pragmática, permitindo continuidade das obras sem interrupções para redesenho metodológico
O mercado já incorporou as distorções nas propostas, tornando o problema mais teórico que prático
A prioridade deveria ser a execução, não o aperfeiçoamento metodológico, em um país com déficit histórico de infraestrutura
Estas objeções merecem consideração cuidadosa. Entretanto, uma análise dialética revela que:
O custo de desenvolvimento do sistema (estimado em R$ 74 milhões) representa apenas 0,7% do impacto econômico calculado da sua ausência, configurando um retorno sobre investimento excepcional de 143:1
Os ajustes ad hoc perpetuam a insegurança jurídica e operacional, resultando em atrasos e custos superiores ao investimento necessário para uma solução estruturada
A incorporação das distorções pelo mercado ocorre de forma ineficiente e não uniforme, gerando seleção adversa de fornecedores e redução da competitividade nas licitações
A falsa dicotomia entre execução e aperfeiçoamento metodológico ignora que a ausência do segundo compromete diretamente a primeira, como demonstrado nos projetos paralisados ou atrasados
A síntese desta dialética aponta para a necessidade de uma abordagem integrada que combine:
Medidas emergenciais para viabilizar projetos em andamento
Desenvolvimento estruturado de solução definitiva
Governança institucional que preserve o conhecimento técnico ferroviário
Conclusão: Uma Oportunidade de Transformação Setorial
A crise de precificação ferroviária representa simultaneamente um desafio crítico e uma oportunidade transformadora para o setor de infraestrutura brasileiro. A análise apresentada demonstra que:
As disparidades entre valores Sicro e custos reais (25-30%) não são meras "imprecisões técnicas", mas sintomas de uma crise estrutural de governança do conhecimento ferroviário nacional
O impacto econômico desta deficiência transcende os projetos individuais, afetando a competitividade sistêmica do país e comprometendo a realização de ganhos de eficiência logística estimados em 0,3-0,5% do PIB anualmente
A solução requer não apenas medidas técnicas, mas uma reconstrução institucional da capacidade estatal de planejamento e execução ferroviária
As lições históricas da trajetória ferroviária brasileira e as experiências internacionais bem-sucedidas oferecem um roteiro para esta reconstrução
A implementação do programa FERROCUSTOS, com suas três fases articuladas, representa uma oportunidade de transcender a abordagem incremental que tem caracterizado as políticas setoriais, estabelecendo um novo paradigma de governança da infraestrutura ferroviária brasileira.
O momento atual, com projetos estratégicos em risco devido à inadequação metodológica, impõe uma escolha clara: persistir na utilização de instrumentos inadequados, comprometendo investimentos bilionários, ou investir na reconstrução das capacidades técnicas e institucionais necessárias para o desenvolvimento sustentado da malha ferroviária nacional.
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