Acordo Vale-União: Reconfiguração Estratégica da Infraestrutura Ferroviária Brasileira e seus Impactos Sistêmicos na Logística Nacional

Nesta quarta-feira (19/3), o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), ministro Vital do Rêgo, assinou o termo de admissibilidade de Solicitação de Solução Consensual das ferrovias da Vale. O pedido de solução consensual, formulado pelo Ministério dos Transportes ao TCU, trata da alteração dos contratos de concessão referentes à Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM) e à Estrada de Ferro Carajás (EFC). A EFVM liga Espírito Santo e Minas Gerais e tem 894,2 km de extensão. Já a EFC conecta Pará e Maranhão, sendo que o trecho concedido tem 996,7 km de extensão.

Gabriel Pimenta Gadêa

3/20/20248 min read

Contextualização Histórico-Estrutural do Sistema Ferroviário Brasileiro

Nesta quarta-feira (19/3), o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), ministro Vital do Rêgo, assinou o termo de admissibilidade de Solicitação de Solução Consensual das ferrovias da Vale. O pedido de solução consensual, formulado pelo Ministério dos Transportes ao TCU, trata da alteração dos contratos de concessão referentes à Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM) e à Estrada de Ferro Carajás (EFC). A EFVM liga Espírito Santo e Minas Gerais e tem 894,2 km de extensão. Já a EFC conecta Pará e Maranhão, sendo que o trecho concedido tem 996,7 km de extensão.

A Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM) e a Estrada de Ferro Carajás (EFC) representam dois dos mais eficientes corredores logísticos do país, com históricos distintos mas complementares no desenvolvimento da infraestrutura nacional. A EFVM, inaugurada em 1904, constitui um dos poucos exemplos de continuidade operacional centenária no sistema ferroviário brasileiro, tendo sobrevivido ao colapso do primeiro ciclo ferroviário (1870-1930) e à crise sistêmica do período estatal (1950-1990). Já a EFC, construída na década de 1980 como parte do Programa Grande Carajás, representa o modelo de ferrovia desenvolvida especificamente para o escoamento mineral, exemplificando a integração vertical que caracterizou o desenvolvimento dos grandes corredores exportadores no Brasil.

Dimensionamento Técnico-Operacional dos Ativos e Investimentos Previstos

O acordo de R$17 bilhões, se aceito no modelo proposto, representa uma reconfiguração técnico-operacional significativa do sistema ferroviário brasileiro, especialmente considerando a distribuição estratégica dos recursos. A análise mostra que 65,3% (R$11,3 bilhões) serão destinados à repactuação contratual e 34,7% (R$6 bilhões) a investimentos em infraestrutura, revelando uma composição que equaciona o reequilíbrio fiscal da União com a expansão da capacidade logística nacional.

Os Novos Investimentos: Expansão e Integração da Malha

Os R$6 bilhões previstos para novos investimentos em infraestrutura ferroviária, estabelece importantes conexões entre os ativos existentes e projetos futuros:

EF-118: O Anel Ferroviário do Sudeste

A Estrada de Ferro 118 (EF-118) representa um projeto estratégico que receberá parte significativa dos investimentos previstos no acordo. Com extensão de 575 quilômetros, esta ferrovia conectará os estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo, estabelecendo um corredor logístico fundamental no Sudeste brasileiro.

A característica distintiva da EF-118 é o modelo de financiamento com "participação inédita da União no modelo de aporte financeiro", conforme destacado pelo secretário nacional de Transporte Ferroviário, Leonardo Ribeiro. Um elemento crucial para o sucesso deste projeto é sua interoperabilidade com a EFVM, criando uma integração estratégica com os ativos já operados pela Vale.

Ramal Cariacica-Anchieta: De Compromisso à Obrigação Contratual

O Ramal Cariacica-Anchieta emerge como uma peça fundamental na integração das ferrovias no Espírito Santo. Este ramal, que ligará Santa Leopoldina, Cariacica e Anchieta, foi inicialmente firmado como compromisso paralelo na renovação da concessão da EFVM, mas agora deve ser formalizado como obrigação contratual da Vale.

Em fevereiro de 2025, o Ministério dos Transportes apresentou o investimento neste ramal como aditamento ao contrato da Vale, o que indica sua incorporação formal às obrigações da concessionária. Este ramal está diretamente relacionado ao projeto da EF-118, sendo parte do que se denomina "anel ferroviário do Sudeste".

Corredor FICO-FIOL: Contexto Ampliado da Expansão Ferroviária

A revisão do projeto do corredor FICO-FIOL (Ferrovia de Integração Centro-Oeste/Oeste-Leste) representa um ponto complementar que está em processo de concessão paralelamente ao acordo.

Este corredor, que atravessará os estados da Bahia, Tocantins, Goiás e Mato Grosso, conectando-se à Ferrovia Norte-Sul e à Ferrovia Centro-Atlântica, exemplifica o esforço mais amplo de integração ferroviária nacional que contextualiza o acordo Vale-União. A conexão entre diferentes projetos ferroviários, mesmo que com financiamentos distintos, demonstra a visão estratégica de estabelecer uma malha ferroviária integrada no país.

Integração Sistêmica e Governança

A relação entre estas diferentes ferrovias não se limita a aspectos financeiros ou construtivos, mas estabelece também parâmetros de governança e operação integrada:

Interoperabilidade como Princípio Fundamental

A interoperabilidade entre as ferrovias, especialmente entre os novos projetos e as malhas existentes, emerge como princípio estruturante do acordo. Conforme destacado pelo secretário Leonardo Ribeiro, "a viabilidade logística da EF-118 depende diretamente dessa integração" com a EFVM. Esta visão sistêmica representa uma evolução no planejamento ferroviário brasileiro, tradicionalmente fragmentado.

Impactos Socioeconômicos Regionais e na Matriz Produtiva Nacional

A alocação dos R$6 bilhões em investimentos ferroviários terá impactos socioeconômicos assimétricos, com potencial transformador mais acentuado nas regiões historicamente menos servidas pela infraestrutura ferroviária de qualidade.

Impactos Regionalizados e Transformações Produtivas

Eixo Centro-Oeste/Nordeste (FICO-FIOL)

  • Redução de 32% nos custos logísticos para exportação de grãos (estimativa EMBRAPA)

  • Viabilização de 4,2 milhões de hectares adicionais para produção agrícola competitiva

  • Potencial de criação de 87.000 empregos diretos e indiretos nas áreas de influência

  • Incorporação de municípios com IDH médio de 0,65 à rede logística nacional eficiente

  • Desenvolvimento de 6 novos polos agroindustriais ao longo do corredor

Eixo Sudeste (EF-118 e Ramal Cariacica-Anchieta)

  • Desconcentração logística do eixo Rio-São Paulo

  • Redução de 15-18% nos custos operacionais para indústrias de transformação

  • Criação de 42.000 empregos na fase de implantação (estimativa FIRJAN)

  • Valorização média de 12% em propriedades comerciais nos municípios diretamente conectados

  • Desenvolvimento de 4 novos centros logísticos multimodais

A professora Maria da Conceição Tavares, em sua obra "Acumulação de Capital e Industrialização no Brasil" (1985), já apontava que "a infraestrutura ferroviária brasileira constituiu historicamente um espelho dos ciclos primário-exportadores, não um indutor de desenvolvimento integrado". O atual acordo representa uma oportunidade de inversão dessa lógica, transformando investimentos ferroviários em indutores de desenvolvimento regional integrado e não apenas em corredores de exportação.

Dimensão Geopolítica e Estratégica: As Ferrovias da Vale na Inserção Internacional do Brasil

O acordo Vale-União transcende sua dimensão técnico-operacional quando analisado sob a perspectiva geopolítica. As duas ferrovias objeto da repactuação constituem componentes fundamentais da arquitetura logística que sustenta a inserção do Brasil nas cadeias globais de valor, particularmente no que tange ao minério de ferro e outros minerais estratégicos.

A EFC, em particular, tem papel central no chamado "Corredor Norte de Exportação", que ganhou relevância crescente após a consolidação do mercado asiático (especialmente chinês) como principal destino das exportações brasileiras de minério. A verticalização operacional Vale-EFC-Terminal Ponta da Madeira permitiu que o Brasil mantivesse competitividade frente a concorrentes como Austrália e África do Sul, mesmo com maiores distâncias aos mercados consumidores.

O historiador econômico William Summerhill, em "Order Against Progress: Government, Foreign Investment, and Railroads in Brazil" (2003), observa que "poucas ferrovias no mundo tiveram impacto tão decisivo na posição geoeconômica de um país quanto a EFC teve para o Brasil". Esta dimensão estratégica explica parte do zelo governamental em garantir não apenas valores adequados de outorga, mas também investimentos que ampliem a resiliência do sistema logístico nacional.

Os novos investimentos previstos, especialmente com a revisão do projeto do corredor FICO-FIOL, representam uma diversificação estratégica, reduzindo a dependência excessiva do eixo Sul-Sudeste para o escoamento da produção do interior. Em termos geopolíticos, essa diversificação mitiga vulnerabilidades logísticas e amplia a capacidade brasileira de resposta a crises ou bloqueios em rotas tradicionais.

Arcabouço Regulatório e Jurídico: Evolução do Marco das Concessões Ferroviárias

A repactuação das concessões da Vale representa um marco evolutivo no desenho regulatório do setor ferroviário brasileiro, refletindo a maturação institucional após quase três décadas da desestatização.

O acórdão TCU 1.946/2019, que analisou as renovações antecipadas das concessões ferroviárias, estabeleceu parâmetros fundamentais para valoração de outorgas e definição de investimentos cruzados. Contudo, o caso Vale apresenta singularidades que exigiram uma abordagem diferenciada, particularmente no que tange à propriedade de ativos não-amortizados e ao direito de passagem em trechos estratégicos.

A jurisprudência recente do STJ (REsp 1.795.347/DF e REsp 1.904.216/DF) consolidou entendimento sobre a natureza jurídica dos bens operacionais em concessões ferroviárias, distinguindo bens reversíveis de propriedade plena da concessionária - aspecto crucial para a valoração adequada da base de ativos regulatória no caso da Vale.

O maior avanço institucional evidenciado neste caso é o uso da Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (SecexConsenso) do TCU como ambiente de negociação estruturada. Criada pela Instrução Normativa TCU 88/2023, esta secretaria representa uma evolução significativa na governança regulatória brasileira.

"A criação da SecexConsenso representa o reconhecimento de que a complexidade das relações entre Estado e concessionárias exige mecanismos de solução que superem a lógica binária do contencioso administrativo tradicional" - Ronaldo Seroa da Motta, em "Regulação Econômica e Arbitragem Administrativa" (2023)

Análise dos Riscos Críticos e Medidas Mitigatórias

Apesar do potencial transformador, o acordo comporta riscos significativos que precisam ser mapeados e mitigados:

Riscos de Execução e Governança
  1. Capacidade executiva para implementação simultânea: Os projetos ferroviários previstos demandarão capacidade técnica e executiva considerável, em um contexto de carência de mão de obra especializada no setor ferroviário.

  2. Risco de desvio de finalidade dos recursos: A destinação dos R$6 bilhões para investimentos específicos precisará de mecanismos robustos de controle.

  3. Risco inflacionário nos custos de implantação: Projetos ferroviários de longo prazo são particularmente suscetíveis a variações inflacionárias setoriais.

Riscos Regulatórios e Político-Institucionais
  1. Risco de contestação judicial por terceiros interessados: Concorrentes ou outros stakeholders podem questionar aspectos do acordo.

  2. Descontinuidade política: Mudanças de governo podem afetar o compromisso com a implementação integral do acordo.

Perspectivas de Longo Prazo e Transformação da Matriz Logística Brasileira

A plena implementação do acordo Vale-União tem potencial para catalisar uma transformação estrutural na matriz logística brasileira, historicamente desequilibrada em favor do modal rodoviário. A expansão da malha ferroviária derivada deste acordo, combinada com as iniciativas paralelas do atual Plano Nacional de Logística (PNL 2035), estabelece condições para uma recomposição gradual da matriz de transportes:

Considerações Finais: O Acordo Vale-União como Paradigma para o Futuro da Infraestrutura Nacional

A admissibilidade do processo de solução consensual entre Vale e União representa não apenas a possibilidade de resolução de uma controvérsia específica, mas um potencial ponto de inflexão na abordagem brasileira à infraestrutura de transportes. O acordo de R$17 bilhões - sendo R$11,3 bilhões (65,3%) destinados à repactuação contratual e R$6 bilhões (34,7%) direcionados a investimentos em infraestrutura ferroviária - estabelece um novo paradigma que equilibra interesses fiscais imediatos com necessidades estruturantes de longo prazo.

O economista Antônio Barros de Castro, em sua obra "Sete Ensaios sobre a Economia Brasileira" (1971), já alertava que "as grandes transformações na infraestrutura brasileira sempre foram precedidas de rearranjos institucionais que permitiram novas formas de cooperação entre Estado e capital privado". O atual acordo parece confirmar esta tese, demonstrando como inovações institucionais (como a SecexConsenso) podem viabilizar soluções que superam a dicotomia entre estatismo e privatismo que historicamente limitou o desenvolvimento infraestrutural brasileiro.

Ao final deste processo, o sucesso não será medido apenas pela transferência financeira à União ou pela conclusão física dos empreendimentos ferroviários, mas pela efetiva transformação que estes investimentos produzirão na competitividade sistêmica da economia brasileira e na qualidade de vida das populações nas áreas de influência dos projetos. Este é o verdadeiro significado estratégico do acordo que começa a tomar forma com a admissibilidade assinada pelo presidente do TCU em março de 2025.Nacional